Mesmo caindo na banalização, não é
falso dizer que mais que o nome de um diretor, Alfred Hitchcock é uma marca. Além
disso, ele pode muito bem ser apontado como o mais importante diretor de cinema
de todos os tempos. Ícone do suspense é talvez o único diretor reconhecido por cinéfilos e não cinéfilos sem
ter trabalhado também como ator (como Chaplin, por exemplo). Mesmo quem não gosta de cinema conhece ao
menos a clássica cena do chuveiro de "Psicose", possivelmente a mais parodiada,
homenageada, copiada e imitada na história do cinema. Até ai nenhuma novidade,
mas dois filmes recentes resolveram dissecar um pouco mais de sua figura. Mostrar
Hitchcock a partir de suas obras e seu relacionamento com os atores. Um filme
para o cinema e outro para a TV procuram mostrar um pouco do método de trabalho
do diretor. Ambientados em tempos próximos, ambos tem pontos de vista
extremamente diferentes que vão da idealização à denuncia de assédio.
The girl foi primeiro. Filme
feito para TV numa coprodução entre a inglesa BBC e a americana HBO tem uma
visão bastante negativa do diretor e mostra seu relacionamento conturbado com ‘Tippi’
Hedren, atriz que trabalhou com o diretor em “Os Pássaros” e “Marnie –
Confissões de uma Ladra”. O filme foca no período de produção desses dois
filmes (lançados em 1963 e 1964, respectivamente). Já o outro filme intitulado
”Hitchcock”, mostra o momento imediatamente posterior ao sucesso do filme
“Intriga Internacional”, quando o diretor se decide por produzir “Psicose” (lançado em 1960). Baseado no livro “Alfred Hitchcock e os
bastidores de Psicose” do escritor e roteirista Stephen Rebello, fã do diretor e
o último a entrevista-lo antes de sua morte em 1980, esse último filme pega mais leve com Hitch (como
muita gente gostava de chamá-lo) e se concentra em mostrá-lo como bonachão,
divertido e um idealizador visionário (um dos poucos pontos de intersecção com
"The Girl").
"The Girl", assim como "Hitchcock", não
pode ser considerado totalmente isento já que contou com a colaboração de Tippi
Hedren em sua produção. A atriz foi descoberta pelo diretor em um comercial e
alçada à condição de estrela pelo exigente diretor, que gostava de poder moldar
suas estrelas femininas. Apesar de suas limitações Tippi era agradecida ao
diretor pela oportunidade já que Hitch era o maior diretor da época e ela
apenas uma modelo iniciando no mundo da interpretação. Isso deu a oportunidade
para que Hitch utilizasse de seu sadismo em busca de captar emoções mais fortes
dela em cena. Na produção de Os Pássaros ele chega a usar pássaros de verdade
atacando a atriz em uma cena para dar mais realismo. O problema é que a atriz
não foi avisada com antecedência e acabou se machucando, fazendo com que ela
pensasse seriamente em abandonar as filmagens, coisa que possivelmente só não
ocorreu pelo fato dela ter que honrar o contrato de sete anos assinado com o
diretor, isso a obrigou também a estrelar o filme seguinte do diretor, “Marnie
– Confissões de uma Ladra”. O ataque dos pássaros, porém serviu para que ela
começasse a ver o diretor de outra forma e passasse a enfrenta-lo. É interessante
notar que o filme “Hitchcock” mesmo com um clima mais “chapa branca” também
mostra um lado mais autoritário do diretor. A porta voz disso é Vera Miles,
atriz que antes havia trabalhado com o diretor em “O
Homem Errado”. Ela iria ser a atriz principal de “Um corpo que Cai”, mas
engravidou, o que aparentemente deixou irritado o diretor, que a colocou em
"Psicose" para valer seu contrato ainda vigente. No filme Jessica Biel interpreta
o papel de Vera, ela conta sua experiência anterior com o diretor para Janet
Leigh, atriz da clássica cena do chuveiro, vivida aqui por Scarlet Johansson.
Vera conta sobre sua mania de querer controlar as atrizes, querer decidir o que
fazem e até a cor do cabelo que devem usar.
Nem um pouco animada em trabalhar com o diretor novamente ela talvez
represente Tippi Hedren durante as gravações de Marnie, enquanto Janet Leigh,
toda deslumbrada e agradecida seria como Tippi durante o início das filmagens
de "Os Pássaros". Porém em “Hitchcock” Jéssica Biel só faz uma ponta e Johanssonn
é praticamente uma das protagonistas, dessa forma a tentativa de isenção do
filme só vai até certo ponto.
As únicas pessoas que são
retratadas nos dois filmes além de Hitchcock (Tippi Hedren não é retratada em
“Hitchcock” e os atores de “Psicose” não são retratados em “The Girl”) são
Alma, a esposa do diretor e Peggy Robertson, fiel assistente de Hitch. É interessante
notar as diferenças de caracterização entre as duas obras, Hitchcock é mostrado
como uma figura carismática em “Hitchcock” e como autoritário, assediador e
chato em “The Girl”. Anthony Hopkins de “Hitchcock” e Toby Jones de “The Girl”
fizeram um trabalho de caracterização bastante eficiente, mudando suas
fisionomias e seus tons de voz para se transformarem no diretor. Mas enquanto o
Hitchcock de Hopkins é de certa forma sempre simpático, fala com uma ironia
charmosa e mantém sempre um sorriso discreto no rosto, o de Jones é sombrio,
carrancudo, algumas vezes assustador. É importante frisar que no filme para o
cinema Hitchcock parece ser amado por todos, sempre contando seus causos e
sendo motivo de admiração. Em The Girl ele também conta suas histórias, mas é
ridicularizado pelos demais que o acham repetitivo e, algumas vezes, vulgar.
Alma Hitchcock, esposa do
diretor, é mostrada com simpatia em ambos os filmes. Interpretado por duas
importantes atrizes inglesas, Imelda Staunton, atriz indicada ao Oscar por “O
Segredo de Vera Drake” e mais conhecida por fazer uma das vilãs na série Harry
Potter, vive Alma em “The Girl”. Vencedora do Oscar por “A Rainha” (2006) e
indicada outras três vezes, Helen Mirren é quem interpreta Alma em “Hitchcock”. Ambas
premiadas atrizes inglesas, e também muito conhecidas no teatro (já
fizeram parte do prestigiada “Royal Shakespeare Company”). Imelda é 11 anos
mais jovem que Helen mas isso não faz muita diferença nos filmes. Aliás Imelda às
vezes parece mais envelhecida que Helen. De qualquer forma a diferença de tempo
em que se passa cada filme é de um ou dois anos no máximo. Ambos mostram Alma
como uma pessoa boa, envolvida com o trabalho do marido (em “Hitchcock” ela é
mostrada como verdadeira coprodutora, inclusive revisando o roteiro e não
deixando o diretor perder o controle do filme pra Paramount quando ele cai
doente). A Alma de Helen é forte, decidida e muito prática, a de Imelda é mais
caseira, dá suas opiniões, mas sempre num âmbito mais doméstico. A primeira vê
as paixões platônicas do marido pelas estrelas dos seus filmes apenas como uma
bobagem sem importância, a segunda se irrita e chega a pedir desculpas a Tippi
pela forma como o marido a trata e depois de pegá-lo ligando para a atriz até sai
de casa por um tempo. Até nos cenário da casa existe uma diferença
significativa, enquanto em “Hitchcock” Alma e Alfred vivem em um casarão
luxuoso, em “the Girl” vivem em uma casa confortável, mas com um estilo mais
classe média. Por ser uma obra televisiva, “The Girl” obviamente tem menos
recursos, porém o cenário talvez queira refletir um pouco do perfil da esposa
do diretor apresentado por cada uma das produções.
Peggy Robertson, a fiel
assistente de Hitchcock é interpretada por atrizes bem diferentes , em
Hitchcock pela ótima Toni Collete(Sexto Sentido) e em “The
Girl” por Penelope Wilton, atriz inglesa também eficiente. Só é estranho que,
em Hitchcock ela seja uma mulher de meia idade e no outro seja retratada como
uma senhora com seus 60 anos.
Não sei até que ponto os produtores de “The
Girl” tiveram o cuidado de descaracterizar seus personagens para evitar processos ou cobranças de direito de imagem, mas o fato é que,
como citado anteriormente, além de Tippi Hedren nenhum outro ator que trabalhou
em “Os Pássaros” ou em “Marnie” é personagem do filme. As reconstituições são
legais, mas às vezes parece que ela sozinha fazia os filmes. Um exemplo é uma reconstituição de uma cena de
Marnie em que Tippi contracena com Sean Connery. Chega a ser mostrado alguém
representando o ator mas só de costas. Já em Hitchcock é um desfile. Scarlett
Johanson como Janet Leigh refaz a famosa cena do chuveiro. Jéssica Alba
interpreta Vera Miles que já havia trabalhado antes com o diretor e serve como
um contraponto ao deslumbramento da primeira e o mais incrível é James
D´arcy que praticamente se transforma em Anthony Perkins, a semelhança é enorme.
O eterno Karatê Kid Ralph Macchio faz uma ponta como Joseph Stefano, roteirista
de Psicose. Tem ainda Whitfield Cook que foi roteirista de alguns filmes de
Hitchcock e aqui é retratado como interesse romântica de Alma. Por outro lado,
o canastrão John Gavin, o galã de Psicose é relegado a segundo plano e com
direito a um comentário nada lisonjeiro do diretor (até mesmo o cenário é mais
expressivo que ele). Hitchcock nunca escondeu sua insatisfação com o ator e
quem já viu o filme sabe que nesse caso não é só implicância.
Ambos os filmes são maniqueístas
a seu modo, em “Hitchcock” o diretor é o mocinho, o herói empreendedor que às
vezes tem algumas atitudes discutíveis, mas tudo em nome da arte. Em “The Girl”
Hitchcock é o grande vilão. O sujeito manipulador e explorador que não se furta
a transformar a vida da garota do título em um inferno. Se no início ele é
apresentado apenas como um excêntrico, aos poucos suas diversas camadas de
maldade vão sendo mostradas. Desde a tortura no set até a perseguição obsessiva nos bastidores e na casa de Tippi. Mas
ambos os filmes possuem também qualidades. A maquiagem de Hitchcock em ambos é
muito boa. A do filme “Hitchcock” chegou a ser indicada para o Oscar esse ano.
“The Girl” é um filme para a TV e dessa forma acaba tendo suas limitações, mas,
soube trabalhar bem o choque entre o diretor famoso e tirânico (segundo a visão
do filme) com a garota sem experiência. Hitchcock tem algumas ideias
interessantes, mas, em alguns momentos, parece reverenciar demais o diretor e
se perde em alguns artifícios. Mas dá o devido destaque a Alma, ela é a
verdadeira estrela do filme, Helen Mirren rouba a cena e consegue dar a
dimensão da verdadeira importância que a Sra Hitchcock tinha na vida do
diretor. Algo que “The Girl" não consegue muito bem já que Alma é
retratada apenas como uma dona de casa.
Observação 1 - Em “Fascinado pela
Beleza – Alfred Hitchcock e suas atrizes”, que de certa forma parece ter
servido como fonte para algumas partes de “The Girl", Donald Spoto, biógrafo de Hitchcock
conta muito sobre o sofrimento impingido a Tippi Hedren e algumas outras
atrizes. Uma obsessão realmente, corroborando muito do que é mostrado no filme.
Hitchcock a impedia a inclusive de ter contato com os demais atores, fato
confirmado por vários colegas de elenco. Diane Baker, que também trabalhou em “Marnie”
e igualmente sofreu assédio confidenciou: ““... a pior coisa era chegar naquele
estúdio e vê-la sofrendo daquele jeito...” “... A coisa toda foi uma tortura
para mim e, claro, ainda pior para Tippi...”. Então não dá para descartar o que
está em “The Girl” como exageros. Mas também apesar da envernização não podemos
dizer que “Hitchcock” seja uma mentira. Talvez apenas dois lados de um sujeito
cheio de contradições
Observação 2: Sempre pensei que o
nome da atriz Melanie Griffith, fosse devido ao nome da
personagem de Tippi Hedren (que é sua mãe) em “Os Pássaros”, também Melanie. Mas foi apenas coincidência,
ela já tinha nascido quando a mãe filmou com Hitchcock e inclusive é retratada em "The Girl". Vivendo e aprendendo.
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