quarta-feira, 20 de março de 2013

Alfred Hitchcock é Apresentado


Mesmo caindo na banalização, não é falso dizer que mais que o nome de um diretor, Alfred Hitchcock é uma marca. Além disso, ele pode muito bem ser apontado como o mais importante diretor de cinema de todos os tempos.  Ícone do suspense é talvez o único diretor reconhecido por cinéfilos e não cinéfilos sem ter trabalhado também como ator (como Chaplin, por exemplo).  Mesmo quem não gosta de cinema conhece ao menos a clássica cena do chuveiro de "Psicose", possivelmente a mais parodiada, homenageada, copiada e imitada na história do cinema. Até ai nenhuma novidade, mas dois filmes recentes resolveram dissecar um pouco mais de sua figura. Mostrar Hitchcock a partir de suas obras e seu relacionamento com os atores. Um filme para o cinema e outro para a TV procuram mostrar um pouco do método de trabalho do diretor. Ambientados em tempos próximos, ambos tem pontos de vista extremamente diferentes que vão da idealização à denuncia de assédio.

The girl foi primeiro. Filme feito para TV numa coprodução entre a inglesa BBC e a americana HBO tem uma visão bastante negativa do diretor e mostra seu relacionamento conturbado com ‘Tippi’ Hedren, atriz que trabalhou com o diretor em “Os Pássaros” e “Marnie – Confissões de uma Ladra”. O filme foca no período de produção desses dois filmes (lançados em 1963 e 1964, respectivamente). Já o outro filme intitulado ”Hitchcock”, mostra o momento imediatamente posterior ao sucesso do filme “Intriga Internacional”, quando o diretor se decide por produzir “Psicose” (lançado em 1960). Baseado no livro “Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose” do escritor e roteirista Stephen Rebello, fã do diretor e o último a entrevista-lo antes de sua morte em 1980, esse último filme pega mais leve com Hitch (como muita gente gostava de chamá-lo) e se concentra em mostrá-lo como bonachão, divertido e um idealizador visionário (um dos poucos pontos de intersecção com "The Girl").

"The Girl", assim como "Hitchcock", não pode ser considerado totalmente isento já que contou com a colaboração de Tippi Hedren em sua produção. A atriz foi descoberta pelo diretor em um comercial e alçada à condição de estrela pelo exigente diretor, que gostava de poder moldar suas estrelas femininas. Apesar de suas limitações Tippi era agradecida ao diretor pela oportunidade já que Hitch era o maior diretor da época e ela apenas uma modelo iniciando no mundo da interpretação. Isso deu a oportunidade para que Hitch utilizasse de seu sadismo em busca de captar emoções mais fortes dela em cena. Na produção de Os Pássaros ele chega a usar pássaros de verdade atacando a atriz em uma cena para dar mais realismo. O problema é que a atriz não foi avisada com antecedência e acabou se machucando, fazendo com que ela pensasse seriamente em abandonar as filmagens, coisa que possivelmente só não ocorreu pelo fato dela ter que honrar o contrato de sete anos assinado com o diretor, isso a obrigou também a estrelar o filme seguinte do diretor, “Marnie – Confissões de uma Ladra”. O ataque dos pássaros, porém serviu para que ela começasse a ver o diretor de outra forma e passasse a enfrenta-lo. É interessante notar que o filme “Hitchcock” mesmo com um clima mais “chapa branca” também mostra um lado mais autoritário do diretor. A porta voz disso é Vera Miles, atriz que antes havia trabalhado com o diretor em “O Homem Errado”. Ela iria ser a atriz principal de “Um corpo que Cai”, mas engravidou, o que aparentemente deixou irritado o diretor, que a colocou em "Psicose" para valer seu contrato ainda vigente. No filme Jessica Biel interpreta o papel de Vera, ela conta sua experiência anterior com o diretor para Janet Leigh, atriz da clássica cena do chuveiro, vivida aqui por Scarlet Johansson. Vera conta sobre sua mania de querer controlar as atrizes, querer decidir o que fazem e até a cor do cabelo que devem usar.  Nem um pouco animada em trabalhar com o diretor novamente ela talvez represente Tippi Hedren durante as gravações de Marnie, enquanto Janet Leigh, toda deslumbrada e agradecida seria como Tippi durante o início das filmagens de "Os Pássaros". Porém em “Hitchcock” Jéssica Biel só faz uma ponta e Johanssonn é praticamente uma das protagonistas, dessa forma a tentativa de isenção do filme só vai até certo ponto.

As únicas pessoas que são retratadas nos dois filmes além de Hitchcock (Tippi Hedren não é retratada em “Hitchcock” e os atores de “Psicose” não são retratados em “The Girl”) são Alma, a esposa do diretor e Peggy Robertson, fiel assistente de Hitch. É interessante notar as diferenças de caracterização entre as duas obras, Hitchcock é mostrado como uma figura carismática em “Hitchcock” e como autoritário, assediador e chato em “The Girl”. Anthony Hopkins de “Hitchcock” e Toby Jones de “The Girl” fizeram um trabalho de caracterização bastante eficiente, mudando suas fisionomias e seus tons de voz para se transformarem no diretor. Mas enquanto o Hitchcock de Hopkins é de certa forma sempre simpático, fala com uma ironia charmosa e mantém sempre um sorriso discreto no rosto, o de Jones é sombrio, carrancudo, algumas vezes assustador. É importante frisar que no filme para o cinema Hitchcock parece ser amado por todos, sempre contando seus causos e sendo motivo de admiração. Em The Girl ele também conta suas histórias, mas é ridicularizado pelos demais que o acham repetitivo e, algumas vezes, vulgar.

Alma Hitchcock, esposa do diretor, é mostrada com simpatia em ambos os filmes. Interpretado por duas importantes atrizes inglesas, Imelda Staunton, atriz indicada ao Oscar por “O Segredo de Vera Drake” e mais conhecida por fazer uma das vilãs na série Harry Potter, vive Alma em “The Girl”. Vencedora do Oscar por “A Rainha” (2006) e indicada outras três vezes, Helen Mirren é quem  interpreta Alma em “Hitchcock”. Ambas premiadas atrizes inglesas, e também muito conhecidas no teatro (já fizeram parte do prestigiada “Royal Shakespeare Company”). Imelda é 11 anos mais jovem que Helen mas isso não faz muita diferença nos filmes. Aliás Imelda às vezes parece mais envelhecida que Helen. De qualquer forma a diferença de tempo em que se passa cada filme é de um ou dois anos no máximo. Ambos mostram Alma como uma pessoa boa, envolvida com o trabalho do marido (em “Hitchcock” ela é mostrada como verdadeira coprodutora, inclusive revisando o roteiro e não deixando o diretor perder o controle do filme pra Paramount quando ele cai doente). A Alma de Helen é forte, decidida e muito prática, a de Imelda é mais caseira, dá suas opiniões, mas sempre num âmbito mais doméstico. A primeira vê as paixões platônicas do marido pelas estrelas dos seus filmes apenas como uma bobagem sem importância, a segunda se irrita e chega a pedir desculpas a Tippi pela forma como o marido a trata e depois de pegá-lo ligando para a atriz até sai de casa por um tempo. Até nos cenário da casa existe uma diferença significativa, enquanto em “Hitchcock” Alma e Alfred vivem em um casarão luxuoso, em “the Girl” vivem em uma casa confortável, mas com um estilo mais classe média. Por ser uma obra televisiva, “The Girl” obviamente tem menos recursos, porém o cenário talvez queira refletir um pouco do perfil da esposa do diretor apresentado por cada uma das produções.

Peggy Robertson, a fiel assistente de Hitchcock é interpretada por atrizes bem diferentes , em Hitchcock pela ótima Toni Collete(Sexto Sentido) e em “The Girl” por Penelope Wilton, atriz inglesa também eficiente. Só é estranho que, em Hitchcock ela seja uma mulher de meia idade e no outro seja retratada como uma senhora com seus 60 anos.

 Não sei até que ponto os produtores de “The Girl” tiveram o cuidado de descaracterizar seus personagens para evitar processos ou cobranças de direito de imagem, mas o fato é que, como citado anteriormente, além de Tippi Hedren nenhum outro ator que trabalhou em “Os Pássaros” ou em “Marnie” é personagem do filme. As reconstituições são legais, mas às vezes parece que ela sozinha fazia os filmes.  Um exemplo é uma reconstituição de uma cena de Marnie em que Tippi contracena com Sean Connery. Chega a ser mostrado alguém representando o ator mas só de costas.  Já em Hitchcock é um desfile. Scarlett Johanson como Janet Leigh refaz a famosa cena do chuveiro. Jéssica Alba interpreta Vera Miles que já havia trabalhado antes com o diretor e serve como um contraponto ao deslumbramento da primeira e o mais incrível é James D´arcy que praticamente se transforma em Anthony Perkins, a semelhança é enorme. O eterno Karatê Kid Ralph Macchio faz uma ponta como Joseph Stefano, roteirista de Psicose. Tem ainda Whitfield Cook que foi roteirista de alguns filmes de Hitchcock e aqui é retratado como interesse romântica de Alma. Por outro lado, o canastrão John Gavin, o galã de Psicose é relegado a segundo plano e com direito a um comentário nada lisonjeiro do diretor (até mesmo o cenário é mais expressivo que ele). Hitchcock nunca escondeu sua insatisfação com o ator e quem já viu o filme sabe que nesse caso não é só implicância.

Ambos os filmes são maniqueístas a seu modo, em “Hitchcock” o diretor é o mocinho, o herói empreendedor que às vezes tem algumas atitudes discutíveis, mas tudo em nome da arte. Em “The Girl” Hitchcock é o grande vilão. O sujeito manipulador e explorador que não se furta a transformar a vida da garota do título em um inferno. Se no início ele é apresentado apenas como um excêntrico, aos poucos suas diversas camadas de maldade vão sendo mostradas. Desde a tortura no set até a perseguição obsessiva nos bastidores e na casa de Tippi. Mas ambos os filmes possuem também qualidades. A maquiagem de Hitchcock em ambos é muito boa. A do filme “Hitchcock” chegou a ser indicada para o Oscar esse ano. “The Girl” é um filme para a TV e dessa forma acaba tendo suas limitações, mas, soube trabalhar bem o choque entre o diretor famoso e tirânico (segundo a visão do filme) com a garota sem experiência. Hitchcock tem algumas ideias interessantes, mas, em alguns momentos, parece reverenciar demais o diretor e se perde em alguns artifícios. Mas dá o devido destaque a Alma, ela é a verdadeira estrela do filme, Helen Mirren rouba a cena e consegue dar a dimensão da verdadeira importância que a Sra Hitchcock tinha na vida do diretor. Algo que “The Girl" não consegue muito bem já que Alma é retratada apenas como uma dona de casa.

Observação 1 - Em “Fascinado pela Beleza – Alfred Hitchcock e suas atrizes”, que de certa forma parece ter servido como fonte para algumas partes de “The Girl", Donald Spoto, biógrafo de Hitchcock conta muito sobre o sofrimento impingido a Tippi Hedren e algumas outras atrizes. Uma obsessão realmente, corroborando muito do que é mostrado no filme. Hitchcock a impedia a inclusive de ter contato com os demais atores, fato confirmado por vários colegas de elenco. Diane Baker, que também trabalhou em “Marnie” e igualmente sofreu assédio confidenciou: ““... a pior coisa era chegar naquele estúdio e vê-la sofrendo daquele jeito...” “... A coisa toda foi uma tortura para mim e, claro, ainda pior para Tippi...”. Então não dá para descartar o que está em “The Girl” como exageros. Mas também apesar da envernização não podemos dizer que “Hitchcock” seja uma mentira. Talvez apenas dois lados de um sujeito cheio de contradições

Observação 2: Sempre pensei que o nome da atriz Melanie Griffith,  fosse devido ao nome da personagem de Tippi Hedren (que é sua mãe) em “Os Pássaros”, também Melanie. Mas foi apenas coincidência, ela já tinha nascido quando a mãe filmou com Hitchcock e inclusive é retratada em "The Girl". Vivendo e aprendendo.